A Porta

Adriel Alves
5 min readJan 14, 2022

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Conto A Porta. Foto por Dima Pechurin no Unsplash

“Quando o menino abriu a porta, jamais retornou para casa, ninguém sabe o que ele encontrou por lá, não sabemos se viveu feliz para sempre ou se o destino lhe preparou uma armadilha, mas seus pais sempre lhe avisaram para que não abrisse a porta e ele os desobedeceu… Fim”.

— Nossa vovó, que história triste…

— Sim, meu querido, mas é uma lição de vida. Nós tememos o desconhecido. A gente não sabe o que existe atrás de uma porta que nunca foi aberta, podemos encontrar a felicidade ou uma surpresa terrível — disse a velhinha, com um leve sorriso.

— Sim, vovó — encerrou o garoto.

— Por isso, meu pequenino, jamais abra a porta do fundo do porão, entendeu? Meu pai sempre dizia para não abrir, ele teve seus motivos e até hoje seguimos o conselho. Seus pais nunca ousaram abri-la também.

— Vovó?

— Diga, meu querido.

— Onde vivem os monstros?

— Não sei, e quem sabe? Monstros moram no desconhecido e, estranhamente, podem estar mais próximos do que a gente imagina — ela fez uma careta assustadora com as mãos erguidas, arrancando um gritinho do garoto. — Brincadeira, meu bem. Lembra? Temos medo do desconhecido, mas não se preocupe com isso, é tudo besteira, coisa da imaginação.

— Tá bom, vovó.

— Bem… Boa noite, meu lindo — ela beijou a cabeça do menino, depois deu uma piscadela e caminhou lentamente quarto afora, encostando a porta da maneira mais suave que pôde.

O quarto, iluminado pela luz tremeluzente e alaranjada das velas, foi tomado pela melancolia. O garoto, embaixo do cobertor, pensava no que poderia haver do outro lado da porta da historinha, “será que o menino foi feliz para sempre?”. Em sua cabecinha, ora surgiam imagens de monstrengos horríveis, ora de arco-íris recheados de potes de ouro. De repente, seus pensamentos foram interrompidos por um ruído vindo do canto do quarto e rapidamente sentou-se na cama, pondo-se a observar tudo ao redor.

Não viu nada de estranho, notou que havia sido a porta, que provavelmente foi empurrada pelo vento, fazendo nascer uma pequena fresta. Um vento gelado entrava por ela e o garoto sentiu que, apesar dos calafrios, deveria ir até lá para fechá-la. Pôs os pés no chão gelado, deu uma pequena corrida e alcançou a maçaneta. As velas tremiam, ameaçando se apagarem. Uma lufada de vento escancarou ainda mais a porta, revelando o corredor do lado de fora.

No breu da noite deslizava um vento gélido pelo corredor que lhe arrepiou a espinha. Ouviu no pé de seu ouvido alguém chamando-o e saltou.

— Vovó?

Virou-se, não era ninguém. Pouco depois escutou um assobio longo que vinha do fim do corredor e o seguiu. “É a porta do porão, a porta proibida. Está aberta…”, pensou. O retângulo negro ia e voltava vagarosamente, emitindo um ranger agudo e perturbador. Pela fresta entreaberta um vento frio passeava, provocando os assobios. Um brilho fraco e azulado como a luz lunar vinha da fresta e espalhava-se pelo chão.

— Vovó? É você que está aí dentro? Estou com medo…

Temeroso, o menino se aproximou a pequenos passos da porta preta e a abriu. Devagar adentrou no portal de madeira escura, repetindo um mantra em sua mente: “Monstros não existem. Monstros não existem…”. Lá dentro, as sombras dançavam, silhuetas de objetos mal iluminados pela luz da noite. O menino jurou ter visto coisas naquelas sombras. Pensou em correr para o quarto, mas sentia nas costas que algo lhe observava do corredor. No fundo do porão havia outra porta que também estava entreaberta. Dela vinham sons distantes de vozes. “Tem gente lá!”, disse para si mesmo. Com pressa, os pés do garoto desceram os degraus até finalmente encostarem no chão empoeirado do porão.

Ali, estagnado, mirou o outro retângulo escuro à sua frente, a porta de madeira maciça convidava o menino a entrar por aquele arco. O garoto pensou no conselho da avó e se rebateu com questionamentos: “Será que eles sabem mesmo o que tem por trás da porta? Talvez nunca tenham atravessado. Talvez não seja nada de mais”. Sua curiosidade o convenceu de que precisava saber de quem eram as vozes. “Acho que a vovó só queria pregar uma peça em mim. Monstros não existem”. Enfim, o menino seguiu adiante.

Através da porta se estendia um negrume absoluto. Caminhou um pouco com as mãos estendidas buscando tatear algo, porém estava em um imenso vazio.

— Tem alguém aí?

O silêncio que veio como resposta revirou suas entranhas. Estagnou no fim do corredor ao esbarrar em uma parede sólida. Uma voz grave ressoou do outro lado.

— Querida? Ouviu esse barulho?

As vozes eram indecifráveis para o garoto, como se fosse uma outra língua, desconhecida. Voltaram a falar novamente:

— Acho que veio do guarda-roupa, uma pancada.

— Deve ter sido só impressão sua, amor.

“Que estranho… O que estão falando?”. Instintivamente o menino empurrou a superfície a sua frente e ela cedeu devagar, revelando um cômodo fracamente iluminado.

— Meu Deus… Amor!? A p-porta… A porta do guarda-roupa abriu sozinha.

O garoto se pôs lentamente para fora da escuridão que habitava e vislumbrou duas coisas horríveis sentadas sobre uma cama: uma tinha cabelos castanhos curtos, pele branca macia, dois olhos, um nariz, dentes uniformes, dois braços e duas pernas; os olhos eram pequenos, com bolinhas escuras no meio de um branco. A outra coisa era parecida, porém de cabelos compridos e mais esguia, com dois volumes acima do abdômen, e traços mais suaves. O menino congelou de medo, nunca havia visto algo tão amedrontador. As coisas olhavam para ele com olhos arregalados de pavor e, logo após, gritaram em desespero. Sem reação, o garoto continuou estagnado, tremendo. “Monstros! Monstros existem!” — pensou.

A coisa mais forte levantou-se da cama, agarrou um objeto luminoso que estava ao seu lado e partiu para cima do garoto. Ela desferiu um golpe certeiro na cabeça dele, fazendo-o apagar e despencar no chão, o sangue espichou pelo piso e pelas paredes. Continuou golpeando-o sucessivamente, uma sequência de baques gosmentos e nauseantes; o esmagou até seu crânio virar uma massa disforme. Ao cessar os golpes veio um silêncio sombrio.

Olhos enormes e ofídicos, nariz anfíbio, dentes irregulares, grandes e pontiagudos, pele esverdeada e oleosa, tufos de pelos grossos em um corpo magricela, enormes dedos ossudos nas três mãos e nos quatro pés… Eis a descrição do curioso garoto que jazia estatelado no chão rubro.

— Querida, mas que diabos… Q-que coisa é essa?

Na manhã seguinte o jornal estamparia a seguinte manchete:

“Monstros existem!”.

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Adriel Alves

Poeta e cronista. Integrante do portal Fazia Poesia e da Impérios Sagrados. IG: @purapoesiaa. Inscreva-se no link: https://adriel-alves.medium.com/subscribe