Bibliófago

Adriel Alves
6 min readMar 20, 2024

Uma crônica para quem ama livros.

Cerro os olhos e cheiro as páginas de um livro. O olor áspero escava minhas narinas, sinto a fragrância da natureza, do tronco derrubado e fatiado, que foi sacrificado para meu bel-prazer. Como as civilizações antigas pregavam, o sacrifício é um ato fágico. Eles alimentavam os deuses e o próprio ego, enchiam a pança ao dar de comer às suas crenças infundadas. Assim, a celulose, fruto da árvoreficina, extraída da derme das árvores e tatuada com tinta e pensamentos, sacia os caprichos de nós, humanos-divindades. As árvores cedem a sua carne para que possamos nos eternizar nas palavras.

Roço os dedos nas capas das obras literárias dispostas na estante, sinto a aspereza e a lisura, os altos e baixos relevos, as dobras que o tempo e o desleixo teceram… As capas dos livros são suas vestes. Obviamente, as vestimentas que saltam aos olhos são as mais adquiridas, assim como ocorre nas vitrines das lojas de moda. As livrarias não diferem muito das boutiques. Na vitrine ficam as melhores roupagens, aquelas estampadas com rostos de celebridades ou com ícones de best-sellers ou capas de filmes campeões de bilheteria ou com frases de efeito que prometem milagres (“FAÇA SEU PRIMEIRO MILHÃO EM UM ANO!”,”FODA-SE A ROTINA: mil e uma maneiras de não cair no mesmismo”, “VOCÊ ESTÁ PENSANDO ERRADO!: como aprimorar seu MINDSET e usar 100% do seu cérebro”). Esquecidos em algum confim das livrarias estão as obras culinárias, cartográficas, apostilas de concursos e alguns clássicos imortais que de tão saturados fazem os leitores-consumidores fugirem de sua leitura. A diferença em relação às boutiques, é que, provavelmente, não vai ter um vendedor lhe azucrinando ao pé do ouvido. Você entra na livraria e está perdido, literal e figurativamente, é a toca do coelho de Alice, uma fuga da realidade amarga. São tantos aromas que se mesclam (dos livros e dos cafés sendo preparados na cafeteria em anexo), tantas cores que jorram em nossos olhos que, em êxtase, o cérebro não sabe aonde se dirigir. A vontade que dá é armar uma cabaninha e acampar entre os romances.

Vou contemplando os livros como um cientista observa um novo espécime. Deslizo suavemente os dedos bisturis para dissecar aquele inédito ser. Sei que muitos já o leram, mas uma obra literária se revela diferente para cada leitor. Um livro que conversa conosco como um velho amigo pode ser um colega pé no saco para outra pessoa. Por fim, decido se as suas entranhas merecem habitar minhas prateleiras. Levo os livros frascos e os ordeno em casa, seja por cor ou tamanho ou ordem alfabética ou gênero literário…

Eu, leitor-marinheiro, vou navegando entre as seções. Cada prateleira é uma ilha a ser explorada, com muitos tesouros enterrados e alguns daqueles amores que fincarão em nosso peito eternamente. As prateleira me convidam para um café e uma prosa silenciosa. Livros de autoajuda são engraçados pois, ironicamente, não ajudam ninguém. Como o próprio nome do gênero diz, só nós podemos ajudar a si mesmos. Este espécime literário não passa de um mero placebo na boca dos leitores hipocondríacos, aqueles que leem no intuito de uma possível resolução milagrosa de seus problemas. Livros de crônicas, por outro lado, são cápsulas que nos ajudam a retomar o vigor diário. Podemos degustá-los em pequenas doses, em gotas, pingando uma crônica nos olhos uma vez ao dia. As crônicas são como um café da manhã sortido, pedaços do cotidiano para serem degustados sem pressa, e as digerimos o dia todo, pensando em suas reflexões. Um leitor preguiçoso irá deixar de se aventurar para quedar apenas na estante dos best-sellers. O leitor aventureiro não, vai escavar toda a livraria e esquecer das horas.

O advento do e-book e dos marketplaces onlines que oferecem livros quase a preço de custo podem estar matando as amadas livrarias. Não vou negar que essas facilidades são sedutoras, no entanto, reconheço seus perigos. Com os leitores digitais (e-readers) é possível ter milhares de livros à palma da mão e andar por aí com sua biblioteca completa dentro da bolsa. Neles podemos configurar o tamanho das fontes, a claridade da tela, grifar os trechos prediletos de forma não permanente, pesquisar palavras em dicionários ou traduzi-las dentro do aplicativo, fazer buscas por palavras-chaves… As vantagens são inúmeras. No entanto, e-readers não têm aquele cheirinho especial, suas folhas não são tangíveis e, por isso, não gera o afeto que só o toque pode proporcionar. Os leitores digitais não podem ficar dispostos na estante da sala para embelezar o ambiente e atrair os olhares das visitas que afirmarão: “Nossa, você tem esse livro! Eu amo ele!”. Os livros físicos gravam as marcas do tempo: as manchas, os fungos, as dobras, as capas esmaecidas ou até a mancha de algum líquido que algum dia a gente derramou sem querer e praguejou em voz alta. Acredito que aí está o maior benefício do livro tangível, a sua proximidade conosco. Dispostos nas prateleiras, são nossos amigos próximos ou aqueles colegas esquecidos que vez ou outra nos questionamos por que não estamos mais em contato com eles.

Em razão da minha memória precária, tenho cultivado o hábito de ler as páginas dos livros de cabeça para baixo. Dizem que ajuda a melhorar a cognição. É impressionante o poder de nosso cérebro de se habituar com toda e qualquer mudança, embora ele odeie fazer isso. Cérebros são viciados numa droga chamada rotina. A rotina (como a morfina) deixa tudo mais leve e mais brando, adormece o cérebro, já cansado de tantos estímulos… O cérebro só quer parar de pensar. Enfim, tenho conseguido ler tranquilamente um livro de ponta-cabeça, mas nos primeiros dias foi um desafio. Fico pensando sobre o que aconteceria se porventura eu fizesse isso em local público, iam me taxar de maluco, talvez até gravar um vídeo e postar nas redes sociais onde me crucificariam por uma semana até surgir outro vídeo viral.

Ler, por si só, é um ato de resistência, resistência aos tempos modernos, ao excesso do digital, é um exercício de paz e contemplação. Para ler, você tem que parar tudo o que estiver fazendo e se concentrar ali naquelas páginas, o que não é simples, pois o pensamento divaga entre as palavras. A leitura aprimora nosso foco, ao mesmo tempo em que dá um descanso à nossa mente pensante e a faz velejar para um mundo além. Eu posso frequentar uma escola de magia no Reino Unido, jogar um anel mágico dentro de um vulcão na Terra Média, viajar entre mundos através de portas para encontrar um torre negra mística, acompanhar a política e as guerras épicas na disputa por um trono feito de espadas em Westeros… O corpo não precisa sair do lugar, a mente independe do corpo para viajar e o livro é um meio de transporte interdimensional.

Eu poderia torcer esse pano por horas e horas e ainda derramaria água. Poderia falar de livros até o último grão de areia despencar na ampulheta da vida, não cansaria. Nem só de pão viveremos, tudo que nos rodeia é comida, algumas saborosas, outras indigestas… Pois bem, os livros seriam o equivalente a uma deliciosa sobremesa, aquele prato que mais desejamos e pensamos nele enquanto devoramos a entrada e a refeição principal. Os livros são a chave dessa realidade grade, a alforria está entre suas folhas. Livrerte-se.

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Adriel Alves

Poeta e cronista. Integrante do portal Fazia Poesia. Instagram: @purapoesiaa. Gostou do conteúdo? Se inscreva no link: https://adriel-alves.medium.com/subscribe