Quando as Linhas se Beijam

Adriel Alves
4 min readApr 18, 2024

Quando estou escrevendo à mão, algo que raramente acontece nestes tempos modernos, um fato singular me intriga toda vida. A ponta inferior de minha letra “p” se cruza com a ponta superior de uma letra “t” na linha seguinte. Um encontro improvável em um ato tão caótico como transformar pensamento em tinta, imprimir a alma numa folha de papel. O manuscrito é torto, a linha vai subindo ou descendo, as letras saem sempre diferentes umas das outras, às vezes erramos e não há como voltar atrás, a qualquer momento a tinta pode acabar ou a ponta do lápis pode quebrar… Por isso, em um desses encontros inesperados, quando o “p” beijou o “t”, despropositadamente, ri para mim mesmo, incrédulo, o que me levou a escrever esta crônica. Seria muito estranho se o acaso casasse sempre estas duas letras em quase todas as vezes em que escrevo cursivamente, mas é algo que ocorre com frequência. Como se elas estivessem predestinadas, prometidas uma à outra, contra todo e qualquer rastro de planejamento. O que, para mim, reforça aquela máxima de que há mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Somos nós filhos do caos fervente das estrelas? Somos nós miúdos bonequinhos à mercê de uma divindade onipresente? Somos nós uma simulação de computador de alguma raça alienígena ultrainteligente? Uma história inventada de algum grande escritor?

Botamos tudo na conta do acaso. Cada pequeno ato nosso gera uma cadeia imprevisível de consequências. Não seria exagero dizer que uma topada numa pedra no meio do caminho poderia causar o capotamento de um carro outrora. Da mesma forma que um filete de água de uma nascente pode originar um riacho que pode se tornar um rio, desembocar numa enorme cachoeira, gerar uma arco-íris, virar ponto turístico fotografado diariamente por milhares de turistas que vieram de outros países motivados por um anúncio bonito da internet, ilustrado por alguma pequena empresa que só foi criada em razão da descoberta daquele atrativo turístico… Tudo isso gerado por uma minúscula nascente “p”, esquecida em alguma mata nativa, que beijou um gigantesco “t” de uma linha independente. O que nos leva a crer que é tudo uma enorme corrente, um imenso rio de causas e consequências, um fluxo imparável de coincidências que se esbarram e se costuram, duas letras que se transformam numa frase, num texto, numa página, num capítulo, num livro e em suas milhões de cópias vendidas e lidas por mãos humanas até nos confins da Terra.

Eu vejo os escritores como pequenas divindades. Eles criam pessoas, mundos, planetas, criam vidas e todos os seus desenlaces. O que garante que em alguma realidade aquilo não esteja acontecendo? Que aquele que escreve esteja de certa forma sendo tocado pela força de um universo paralelo… Olha, quem escreveu a linha do horizonte e o pôr do sol está de parabéns! Eu, como poeta, adoro escrever sobre o invisível e as coisas que não existem. O mistério me fascina, não saber das coisas é um dos melhores presentes que a vida pode nos proporcionar. A partir do momento que desnudamos o mistério ele perde o seu encanto. É como engaiolar um pássaro de canto belo. Na natureza os seus gorjeios ganham um tom transcendental de beleza. Na gaiola o seu cântico vira um objeto artificial, como uma flor de plástico, perde as maravilhas efêmeras do orgânico. Não é possível colher uma ópera passarinhal sem que o tenor esteja onde bem entender.

Na vida, encontramos pessoas que jurávamos que fariam parte de toda a nossa jornada nesse mundo. De repente, em algum momento, aquela pessoa vai se afastando, sutilmente deixa de existir em nosso cotidiano. Quando paramos para refletir sobre o que já vivemos é que nos damos conta de que nunca mais falamos com fulano ou sicrano. No presente, aquelas pessoas queridas já perderam a significância, como um brinquedo que algum dia já foi muito amado e que hoje habita um baú empoeirado ou um lixão por aí, quem sabe até tenha sido reciclado e transformado em outro brinquedo amado. No entanto, como os brinquedos, não há dúvida de que esses indivíduos foram de alguma forma essenciais para pavimentar nosso caminho. Foram apenas a linha torta de uma letra que por algum microinstante beijou a ponta de outra, mas fundamental para o deslinde dessa história escrita à mãos. A gente precisa compreender e aceitar a transitoriedade das coisas, pois é tudo uma grande corrente que vem e que passa e nos leva no seu fluxo voraz e tumultuado mas estranhamente organizado. A água que está no rio e no mar também está no céu e irrigando o sangue que pulsa pelos ventrículos do coração.

Sendo assim, não menospreze os pequenos detalhes. Aparentemente, tudo está aqui para cumprir a sua finalidade. Destino ou não, os encontros parecem despojadamente arquitetados. A telha empoeirada esquecida no forro de sua casa estará lá para, em algum momento, substituir uma telha quebrada. A poeira que chove sobre sua estante de livros estará lá, aguardando que você as limpe e redescubra a glória de relembrar a leitura de alguma obra que lhe marcou profundamente e quedava no cemitério das suas lembranças. A formiga perdida que você esmagou sem querer enquanto ia na cozinha beber água estará lá, esperando que as outras formigas carreguem seu corpo para o ninho e no meio do caminho encontrem uma boa fonte de carboidrato. Elas alertarão todo o formigueiro, criarão uma nova romaria rumo ao açúcar santo, propiciando prosperidade à colônia que, em crescimento, arejará e adubará o solo fazendo uma planta florescer para chamar abelhas que a polinizarão e em algum canto criarão florestas…

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Adriel Alves

Poeta e cronista. Integrante do portal Fazia Poesia. Instagram: @purapoesiaa. Gostou do conteúdo? Se inscreva no link: https://adriel-alves.medium.com/subscribe